De como o sistema de transporte público estrangula os pobres em Belém.
Posted: March 27th, 2014 | Author: Amazônia em Chamas | Filed under: Geral | Comments Off on De como o sistema de transporte público estrangula os pobres em Belém.Escrito por Rafael Busquetti
Em Belém, existe claramente uma diferenciação sócio-espacial dentro da cidade, com os bairros “de centro”, o núcleo com a melhor infra-estrutura e a maior circulação de recursos financeiros, e os inúmeros outros bairros de periferia, que, em piores condições estruturais, compõem uma área muito maior do que o centro, e têm também uma população bem maior.
As distâncias entre esses espaços são grandes, enormes para se caminhar, e locomover-se de bicicleta, em Belém, é uma aventura muito arriscada que poucos se atrevem a encarar. (As bicicletas têm um potencial incrível, mas não é esse o foco deste texto – basta dizer que, infelizmente: não há ciclovias interligando todas as partes da cidade, apenas algumas vias principais; na maioria das vezes, a ciclovia encontra-se bloqueada por carros estacionados impunemente; e, principalmente, a conscientização em torno de como compartilhar o trânsito urbano é mínima, os motoristas dos automóveis de todo tipo são uma ameaça aos ciclistas, não tendo a menor consideração, pelo contrário, parece haver um impulso assassino latente em alguns motoristas de ônibus e outros que aflora quando avistam um ciclista.)
Some-se a isso todos os fatores econômicos que impossibilitam a maioria das pessoas de ter seu próprio carro (como o preço dos veículos, da manutenção, do combustível e dos impostos), e podemos visualizar uma “metrópole” com mais de 2 milhões de habitantes cujo principal meio de transporte é o público – o busão!
Acontece que esse transporte público é extremamente sacana com as pessoas que moram na periferia, as que mais precisam dele! Uma sacanagem intencional, porque é absurdo pensar que nunca ninguém percebeu isso, e os responsáveis percebem, sabem, e são omissos ou intencionalmente maldosos, é claro!
Não vou falar sobre a péssima qualidade dos ônibus (assentos quebrados, baratas), dos motoristas (!) e do trânsito caótico, lotado, stressante, paralítico; porque isso todo mundo sabe e sente todos os dias. Quero apontar aqui uma sacanagem diferente, nem sempre incluída nas análises e discussões, que diz respeito à vida cultural da cidade e da população.
Primeiro: o transporte público encerra por volta da meia-noite e a “segurança” urbana (a probabilidade de ser assaltado ou qualquer outro tipo de violência) é praticamente inexistente durante a madrugada. Portanto, no final de cada dia, se você precisa dos ônibus para chegar à sua casa, é bom se apressar porque o ônibus da meia-noite é sua última chance. E se você tem alguma esperança de fazer o trecho centro-periferia, geralmente de mais de uma hora de duração, sentado ou sentada, sinto muito mas já deveria estar a caminho, amigx, porque sabe Deus e a malandragem como isso é possível. As linhas para cobrir os principais trechos de ligação entre centro e periferia têm uma quantidade totalmente insuficiente de ônibus operando.
Segundo: a maioria das atividades culturais rolam pelo centro. O poder público municipal desenvolve um sistema voltado justamente para que as atividades que ele promove passem uma boa aparência, isto é, uma ilusão de qualidade conquistada pela cosmética dos bons espaços (Estação Dondocas, Parque da Residência, Hangar, Portal, etc). Constroem-se esses espaços e a eles se destinam as programações principais. Nessas atividades – a maioria e as que concentram a maior parte dos recursos públicos –, não é objetivo a inclusão social, nem a participação de expressões culturais oriundas das periferias. Esse círculo de poder é elitista e não está preocupado em deixar de ser.
Tradicionalmente sempre foi assim, e, imutavelmente, o centro torna-se o pólo da vida artística. Com isso, os outros setores da população interessados em atividades culturais significativas também acabam voltando seus esforços para realizá-las nesses mesmos espaços ou em espaços próximos, para ter-se a expectativa de um bom público. Mesmo as atividades mais autônomas são, na maioria das vezes, inseridas nessa mesma esfera de conforto do centro, aquela que já conhecemos e sabemos como utilizar.
Terceiro: o primeiro argumento vale para todas as linhas, centro-periferia, periferia-periferia e centro-centro. Quem precisa de ônibus quase não tem opção durante a madrugada, só vans, táxis e moto-táxis; sem ter, no entanto, o dinheiro suficiente pras relações puramente comerciais que são a regra mesmo em sua própria vizinhança.
Tudo isso forma um cenário que se arrasta a décadas e tornou-se, como todo o resto de uma sociedade doente, banal e rotineiro na vida e na percepção da maioria das pessoas, não sendo sequer discutido ou identificado!
É o cenário do “horário do rush”, do trânsito bizarramente lotado das 17h30 às 19h30, dos ônibus-sauna, ônibus-latas-de-sardinha, passageiros-sardinha. A existência de uma disputa feroz por uma vaga no ônibus, mesmo que seja em pé e esmagado por todos os lados! E as filas de pessoas esperando ônibus que não conseguem entrar nos que já passam lotados, o stress cansativo na cabeça de todo mundo, as pequenas violências diárias que sofrem nos ônibus a mulher, o negro, o idoso, o pobre.
É o cenário da elitização dos espaços centrais da cidade que oferecem uma programação cultural, seja por iniciativa governamental, empresarial ou autônoma. Os shows, os concertos, os espetáculos teatrais, as exposições artísticas, são freqüentados apenas por quem tem alguma forma de chegar onde quiser depois, o que significa aqueles que têm carro, os que moram perto (pelo centro) e os que passarão a madrugada acordados até receberem as boas-vindas de um novo dia, exaustos e aliviados ao mesmo tempo.
Resumindo: o sistema de transporte público de Belém contribui para que o “centro” (os bairros centrais), onde se realiza a maior parte dos eventos culturais, permaneça elitizado, pois os pobres, que geralmente moram nos bairros de periferia, dependem dos ônibus e ao final do dia de trabalho precisam encarar a árdua volta para casa o quanto antes.
Com certeza essa situação não é exclusividade de Belém, pelo contrário, é um sintoma presente na maioria das metrópoles do sistema capitalista. Segregação social. Grupos morando na mesma cidade que abominam a convivência.
Finalmente, estendo esta reflexão para as possibilidades…
E se houvesse transporte público de qualidade durante a madrugada? Será que, assim, muita gente não poderia planejar de uma forma diferente seu dia e torná-lo mais agradável? Não surgiriam mais condições para que todas as pessoas pudessem estar em diferentes espaços da cidade conforme sua vontade, seja no centro ou nos outros bairros, “periféricos”, e não conforme os horários das linhas de ônibus?
E se houvesse mais programações culturais descentralizadas pela cidade?
Será que se pode esperar algo de bom nesse sentido vindo de dentro do sistema político e econômico institucionalizado… sem morrer esperando e frustrando-se?